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O meu Adeus ao Miguel. O meu abraço à Catarina.
Ana María Saldanha / quarta-feira 7 de Junho de 2017
 

As palavras foram tantas que me silenciei. Lia, dos vários pontos do mundo por onde o Miguel tinha deixado Saudade, palavras e homenagens imensas.

Homenagens que se partilhavam, ora entre aqueles que com ele compartiram momentos ou militância ou percursos de vida ou percursos profissionais, ora entre aqueles que, não com ele tendo convivido, lhe endereçavam a admiração pelo trajeto, escrita, coerência e luta. Em todos ressaltava um ponto comum: o cruzamento da vida, obra e luta, do Miguel, com o percurso de quem escrevia. E percebi, ao escrever estas linhas, o porquê daquele impossível não confronto. Quem sobre o Miguel escreve, não o faz com indiferença. Fá-lo, porque o Miguel, seja na ideia, trajetos ou conhecimento, deixou uma marca profunda. E percebi que eu tampouco conseguiria escrever sobre o Miguel, sem sobre mim escrever. Porque o caminho que nos últimos anos fui pisando não teria nunca sido o que até hoje foi, se o Miguel nele não tivesse estado presente.

À 1h da manhã, do fuso horário chinês, uma amiga faz-me chegar uma pequena mensagem, Sei que gostavas dele, e imagino o que deves estar a sentir. Sabia que o Miguel se encontrava hospitalizado há uns dias e seguia a sua evolução através das mensagens que, por via eletrónica, a sua querida Catarina, paciente e dedicadamente, ia, com a discrição que se exigia, sempre enviando àqueles que mais próximos estavam.

Não percebi, no entanto, aquela mensagem.

Um pouco depois, outra amiga, outra mensagem, Ana, estás acordada? O Miguel morreu. Demorei a perceber. Levantei-me a correr da leitura que há horas, comodamente, me transportava, sentei-me em frente ao computador e abri o e-mail. Datada de há umas horas, lá estava a notícia que eu não vira atempadamente. Li as lágrimas e a dor da Catarina naquelas únicas quatro palavras que compunham a mensagem que enviara: Adeus Miguel, meu Miguel.

As quatro palavras que anunciavam que o Miguel partira. As quatro palavras que sintetizavam os últimos doze anos de vida do Miguel: o Miguel, o Miguel da Catarina.

Quem com ele conviveu na última década de vida sabe o quanto o Miguel não separou o seu sempre amor revolucionário, do seu sempre amor pela Catarina. Todos os artigos, ensaios, livros, realizados nos últimos doze anos foram escritos, pensados, produzidos, ao lado daquela a quem o Miguel constantemente acariciava com palavras, a quem o Miguel repetidamente, na presença de quem com ele estivesse, relembrava o seu inquebrantável amor, aquela que apaixonadamente o acompanhou nas suas últimas, e tão intensamente vividas, caminhadas pelo mundo. Catarina que lhe trouxera, como Miguel o escrevera, a memória "absurdamente presente" do Amor "em todas as suas vertentes, em patamares que tinha por inatingíveis".

Como a tantas diferentes gerações que abraçaram a luta por um mundo sem exploradores nem explorados, fora o Miguel que me abrira as portas da América latina e do Oriente médio, através das palavras que, no Brasil, primeiro, em Portugal e Cuba, depois, deixara para sempre impressas.

Não sabia, ainda jovem adulta, que o Miguel viria a fazer parte integrante da minha vida. Não imaginava a amizade que com ele viria a partilhar. Desconhecia ainda a importância que ele teria em escolhas que me conduziriam por intensos territórios de luta e que me fariam abdicar de caminhos que confortavelmente poderiam ser vividos. O Miguel foi fundamental na escolha que me levaria pelos trilhos e pela intimidade da luta sul-americana. O Miguel. Não apenas o Miguel, mas também aquela mulher, sua companheira, comunista, que com ele compartiria os últimos 12 anos de vida. A Catarina.

E tudo começaria na sua querida cidade de Serpa. E estender-se-ia para além das fronteiras portuguesas.

Sem o impulso e palavras do Miguel, tampouco teria experimentado as letras e análises de conjunturas que, desde o seu encontro, fui crescentemente escrevinhando. Guardei todas as palavras de alento e de críticas que tão honestamente sempre escrevia. Guardei as também sempre presentes palavras de amizade e de carinho que acompanhavam mesmo as críticas mais ferozes.

Estive com o Miguel e com a Catarina em França, vivia eu entre Grenoble e Lyon, em 2009. Convidara o Miguel para expor a experiência brasileira de luta do Portugal Democrático e para um debate sobre outras experiências de luta, de ontem e de hoje, na América latina. Passeamos pelos Alpes, caminhamos pelas ruas das antigas indústrias têxteis lionesas da Croix Rousse, aproveitamos o então magnífico sol de maio ao lado do Rhône e do Saône. Passeamos e conversamos, almoçámos e debatemos, Aprendi. Na apresentação que então fez, sublinhou que "a luta dos antifascistas portugueses contra a ditadura de Salazar, nos países para onde tinham emigrado, é um tema quase ignorado na Europa, nomeadamente em França". Pena é que essa luta no Brasil, e sobretudo a sua materialização através da publicação do Portugal Democrático, tampouco seja conhecida no país de onde aqueles exilados haviam partido, para fugir a uma ditadura terrorista que perduraria até 1974.

Estive com a Catarina e com o Miguel, no Brasil. Passeamos por Minas Gerais, dormimos e caminhamos pelas obras do Aleijadinho, de Ouro Preto a Congonhas. A sede de conhecimento do Miguel era febril, o acúmulo de conhecimento, intenso, a universalidade do seu Saber, rara. Entravamos numa Igreja e o Miguel extasiava-se perante a beleza barroca mineira, bebíamos um café e o Miguel passeava pela sua vida e pela História, caminhávamos pelas obras do Aleijadinho, e o Miguel lia "o arquiteto e escultor" que, morrendo "pobre e quase ignorado pelos seus contemporâneos" não "teve em vida reconhecido o seu génio". Vimos Mariana, a mais antiga cidade de Minas Gerais, antes do desastre que a mineradora Samarco provocaria, em 2015.

O Miguel insistia que, aquela, seria a sua última viagem ao Brasil. Já em 2012 o havia dito. Mas voltara naquele 2014. Esta seria, no entanto, de fato, a sua última visita ao país onde 17 anos vivera: "Recordo que em São Paulo, ao tomar o avião para Lisboa em 2014, disse à minha companheira: esta será a minha última travessia do Atlântico, o oceano que cruzara dezenas de vezes. Era uma decisão e uma certeza". Dizia, então, não querer fazer mais nenhuma aparição pública. Já aqui temia os efeitos nefastos do envelhecimento, aqueles que, citando Teixeira Gomes, relembraria num dos seus últimos escritos: "E a parte mais dolorosa da senilidade consiste em assistir, consciente mas impotente, à nossa própria ruína mental! (...) a vista já muito mal me serve e a minha memória é um vidro transparente onde logo se apaga tudo quanto nela se reflete". Faria, no entanto, duas exceções, e aceitaria dois convites: um, para dar uma aula na Escola Nacional Florestan Fernandes, a escola de formação política do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); outro, para um debate na sede do Partido Comunista Brasileiro (PCB), no Rio de Janeiro. Movimento social e Partido aqueles que o Miguel sempre admirara, em ambos mantendo amizades que nunca deixariam de o acompanhar. E a voz do Miguel ecoou, uma vez mais, pelo Brasil. Aplaudido e querido, através dos abraços e palavras que lhe foram endereçados, das visitas e reencontros com o tempo, igrejas, terras, ruas, gentes, filhos e netos, refletiu sobre "o contraste entre esses dois Brasis", o Brasil "onde surgiram intelectuais como Niemeyer e Florestan Fernandes" e o Brasil que "produz em série deputados e senadores que tipificam admiravelmente aquilo a que Marx chamou o cretinismo parlamentar".

Na maior escola internacionalista de formação política, Miguel relembrou o seu amigo Florestan Fernandes, "personificação da pureza e da autenticidade revolucionárias", "o mais criador e talentoso sociólogo da América latina", enquanto no PCB reencontrou-se com o Miguel que viveu duas décadas no Brasil, aquele Miguel que "com [a] autorização do PCP" fora também "membro do Partido Comunista Brasileiro, então na clandestinidade".

Miguel era uma referência entre revolucionários e progressistas de todo o mundo. Quando estive em Havana, em junho de 2015, junto de membros da Delegação de Paz das FARC-EP, Ricardo Tellez e Jesús Santrich, ambos do Secretariado do Estado Maior Central desta organização, faziam sempre questão de assinalar a sua admiração, respeito e reconhecimento por aquele que tanto lutara pela visibilidade da heróica luta da guerrilha colombiana. Com o seu humanismo, inseparável do internacionalismo que o moveu pelo mundo, nunca o Miguel esquecera a difícil luta, que tão bem conheceu, naquelas montanhas. As FARC-EP retribuíam. Com admiração, respeito e reconhecimento. A memória do Miguel ali estava, ali está, ali estará sempre presente.

Na Colômbia. E fora dela.

A última vez que o vi foi em Paris, quando a esta cidade veio na última passagem de ano, com a sua Catarina, a sua filha e netos. Lembro-me de estremecer quando, depois desta viagem, já na China, li "Em Paris, pela última vez". Apesar da sempre consciência da próxima morte, apesar de tantas vezes a este fato inexorável da vida humana se referir, ali, naquelas palavras, Miguel despedia-se de todos Nós. E fazia-o com toda a carga de conhecimento e de saber em que dialeticamente a História cruzava a Vida, ambas inseparáveis da luta e do Amor.

Nunca parou de ler, nunca parou de escrever.

Guardo, privilegiadamente, e não sem alguma vaidade - esta característica, contudo, que o Miguel tanto detestava e que o fazia repudiar muitos daqueles que dele procuravam aproximar-se -, as tão bonitas palavras com que se despediu na última mensagem que me enviaria: Faço votos para que encontres em Macau a felicidade relativa possível, na certeza de que essa experiência será útil para a mulher e a escritora.

Não voltaria a trocar correspondência com o Miguel. Não estaria presente no derradeiro Adeus. Não pude abraçar a Catarina aquando do Adeus ao seu Miguel.

O Miguel que nos fez a nós, comunistas e revolucionários, Maiores.
O Miguel que se ria de tantos absurdos escritos e ditos. O Miguel que, ao reconhecer erros na análise científica da realidade, e ao constatar o afastamento de uma perspetiva revolucionária por parte de quem nunca a deveria abandonar, alertava para o perigo de, assim, o Homem abandonar o único mundo possível de superar a barbárie capitalista. O Miguel que escrevia História com a Vida, que nos transportava do Alentejo para a Colômbia, do Irão para a Turquia, da França para o Brasil, do Afeganistão para o México. O Miguel que não caberá nunca numa tímida nota biográfica 4 parágrafos.

De ti, Miguel, despeço-me com a tristeza que a Saudade sempre traz,

A ti, Catarina, o meu amigo abraço,

Ana

As citações deste texto encontram-se nas seguintes reflexões escritas pelo Miguel:

1) "A luta dos antifascistas portugueses do Brasil contra a ditadura de Salazar e o colonialismo" (10/06/2009) : http://www.odiario.info/a-luta-dos-antifascistas-portugueses-do-brasil-contra-a-ditadura-de-salazar-e-o-colonialismo/

2) "Reencontro com o Brasil" (04/12/2014) : http://www.odiario.info/reencontro-com-o-brasil/

3) "Reencontro com Florestan Fernandes" (20/02/2016) : http://www.odiario.info/reencontro-com-florestan-fernandes/

4) "Em Paris, pela última vez" (01/02/2017) : http://www.odiario.info/em-paris-pela-ultima-vez/

5) "Istambul, cidade mágica" (10/02/2017) : http://www.odiario.info/istambul-cidade-magica/

6) "Teixeira Gomes e o envelhecimento" (02/03/2017) : http://www.odiario.info/teixeira-gomes-e-o-envelhecimento/